Saturday, March 22, 2008

Sinto muito

E por um instante não sabia o que fazer. A festa que nunca termina já estava de luzes acesas e, meu amigo, a verdade era essa. Eu estava com o cu na mão – o cu e uma 38, recém-disparada, que agora me encarava como se dissesse, “olha, vou ser sincera com você: a única coisa sensata a se fazer é apertar o gatilho de novo – só que desta vez você vai ter que mirar na própria testa. Boa sorte, cara, e procure não fazer sujeira ou acordar as crianças”. Fui até a porta e notei, não sem um rugido de alívio, que o corredor estava vazio. Já a minha cabeça se enchia com os pensamentos mais sórdidos, um misto de terror e deleite e espanto e (acima de tudo) torpor. É isso! Não conseguia me mexer. Não conseguia mexer nele. A grande diferença entre as pessoas comuns e o Matador é que, quando chegar a hora de fatiar o presunto e dispô-lo no recipiente apropriado para conservar a carne processada, são as primeiras que estarão bêbadas com música alta, traseiros bonitos, champanha barata - e aí deixarão tudo apodrecer em cima da mesa enquanto a polícia veste os convidados com estampa listrada e braceletes de prata que continuam como a última palavra da moda: a primeira da lei. Ele parecia ter uns vinte e poucos anos e devia ter sido feliz. Ao menos aquela noite o fora, pois ostentava a braguilha aberta (talvez estivesse apenas mijando, mas o que posso dizer? Sou um otimista). Limpei o sangue da lapela (minha e dele) e caminhei até o telefone, com aquele ar de quem anda saudavelmente insatisfeito com a vida, mas não está pronto para dividi-la com 27 infelizes numa cela tão espaçosa quanto o intervalo entre Hebe Camargo e seu vibrador, numa solitária noite de domingo. Começava a me dar conta que a coisa toda estava fugindo completamente ao meu controle. Minhas impressões digitais se integravam à decoração do quarto com a rapidez de um garoto de 12 anos pegando no seu primeiro peitinho. Duas senhoras passavam a gargalhadas, risos risos risos, risos risos, enquanto um jovem garçom lhes beijava as tetas caídas com o empenho de quem cobrava por hora e centímetro extras. A coisa começava a feder, em todos os sentidos possíveis, pensei em chorar (não deu tempo), alô, Bragança? nós temos um problema. Para onde minhas pernas iam com tanta pressa? Regurgitei tempestade em copo d’água mas repeti a dose com duas pedras de gelo para acompanhar, por favor. Chegou em meia hora – ele e o sócio magrinho, camisa amassada, que me cumprimentou com um giro maluco da cabeça. Não gosto dele. Acenei de volta.

a vida vivida
Não vale a pena
De ser morrida.
e vice-versa.

Thursday, November 15, 2007

Mi Casa, Su Casa, Alice's Casa

A Casa de Alice, 2006, de Chico Teixeira


Se o cinema brasileiro fosse o refeitório de um teen movie americano, surgiria por aí algo equivalente àquela sombria divisão de castas que se lança sobre as escolas de lá, separando em cada mesa uma ala específica do apartheid juvenil. A partir daí o leitor deve ter mais ou menos uma idéia de como funciona: é passar pelos corredores e esbarrar com todos os tipos de tipo. Desde patricinhas desalmadas que carregam a tiracolo de namorados atletas a próteses de silicone, até carteirados no clube do xadrez, com vida sexual majoritariamente estrelada em carreira solo – de preferência no banheiro de casa, depois de um ensaio fotográfico com a nova gostosinha de Lost, remixado com Daft Punk e desovado no youtube.

Sobrevoando sabe-se lá quantos outros clichês de gênero, o cine brazuca de hoje possui algo próximo daqueles assentos bem demarcados do refeitório, com levas facilmente identificáveis rodando sua película – ou seria bolsinha? – no circuito. É seguindo essa premissa que, quando vamos ao cinema, acabamos por nos alternar na mesa dos pára-poéticos A Via Láctea e Crime Delicado, dos fantásticos A Máquina e O Homem Que Desafiou o Diabo, dos urbanóides somehow melancólicos Jogo Subterrâneo e Não Por Acaso; sem esquecer o grupo dos históricos, dos engajados, dos regionais, dos arretados; sem deixar de lado, claro, risotos-pra-toda-festa como Cidade de Deus e Tropa de Elite.

A Casa de Alice, veja bem, também não é nenhum trend-setter na produção brasileira contemporânea. Pega carona na garupa de uma tendência naturalista já observada em Cão Sem Dono, O Céu de Suely e Contra Todos. No primeiro longa-metragem ficcional de Chico Teixeira, bem acolhido tanto pela imprensa da casa quanto pela internacional, a vida secreta das pessoas pequenas constitui a matéria-prima para um filme que possui, se não êxito, pelo menos o desejo de se manter em estado bruto. Lá, afinal, batem ponto os esforços em prol de interpretações e iluminação “espontâneas” – e Oxalá nos salve de músicas incidentais e outros artifícios maiores que lembrem ao espectador que aquilo tudo que se vê no cinema (a arte das aparências por excelência, vale lembrar) é da carochinha.

Em tempo: A Casa de Alice é um filme de personagens. E como qualquer naturalista que se preze, de personagens pequenas. Uma manicure de meia-idade que vive com filhos, mãe e marido na periferia de São Paulo não é exatamente candidata à Miss Hepburn 2007. Para contar a história pequena de personagens pequenas, lá consta a ausência de uma vontade maior de realizar um pacto narrativo bem selado, que dê às situações – igualmente pequenas, óbvio – apresentadas no filme caráter mais definitivo que insinuativo (e de fato a narrativa deixa algumas portas em aberto, como as relações entre caçula e primogênito e caçula e mãe, embaladas numa suspeita por vezes sexualizada, mas sem grandes certezas empurradas goela abaixo do espectador). É uma forma de fazer filme. Uma das muitas. Bastante válida, por sinal. Mas que pode escorregar com certa facilidade numa pista ensaboada por psicologismos baratos, pronta a amassar suas personagens numa fôrma psicossocial a priorizada – chegando a reconhecer suas particularidades mas não resistindo, no final das contas, àquela velha tentação de tratá-las como expoentes estatísticos de “uma sociedade contemporânea em estado de implosão afetiva”, yadda yadda yadda.

Ou seja, o típico filme que, sem querer dizer muita coisa, tenta dizer tudo e corre o sério risco de acabar não dizendo nada. Chico Teixeira não vai de todo mal ao tentar driblar esse obstáculo. Conduz a protagonista Alice (aliás, em crítica praticamente unânime ao trabalho excepcional de Carla Ribas), é verdade, com certa vontade de chocar, de ‘fazer ver’ o quão insensíveis marido e filhos – e a vida em geral – podem ser com ela. O que pode, diga-se, ser fatal para um cineasta que deseja antes insinuar do que empurrar verdades bem consolidadas. São, contudo, algumas sutilezas, bem como uma relação harmoniosa entre roteiro, direção e elenco, que somam pontos ao trabalho cuidadoso de Teixeira, fazendo-o pender mais para o lado das excelentes obras de Brant e Aïnouz do que para o apelativo Contra Todos, do também estreante Roberto Moreira.

Uma dessas sutilezas se encontra em momentos aparentemente banais, que prevalecem sobre reações sentimentalistas (mais naturalismo, saca?) da protagonista à – recente ou constante? – crise em sua vida. Momentos como as cervejas com a amiga no bar: uma embriaguez despretensiosa, em vez de carregada com reviravoltas dramáticas, como poderia se esperar naquelas horas em que qualquer vestígio de superego já está dançando a Macarena em cima da mesa de acrílico descascado no boteco mais sujo da cidade. Outra óbvia, mas ainda assim boa sacada se dá nos problemas oftalmológicos de dona Jacira (Berta Zemel), mãe de Alice e, ironicamente, única pessoa da casa que parece ter olhos lúcidos a tudo que se passa lá dentro. E no final das contas é por aí mesmo: A Casa de Alice tem lá seus delírios de se insinuar como um verdadeiro ensaio sobre a cegueira que fecha olhos para os valores cambaleantes da sociedade brasileira. Não precisava de tanto, não, Chico. Ser um bom filme já está de bom tamanho.

Sunday, September 09, 2007

Lôra Maria

Se chama Maria. Me chama Carlos. A não ser quando sua língua passeia pelos meus bagos. Como shopping. Voltas e voltas no mesmo lugar. Uma beleza. Aí é Cacá. De resto é sempre Carlos. Carlos. Carlos não trata bem o papagaio dela, reclama. Está sempre reclamando de alguma coisa. Diz que gosta de falar do útero do fundo da alma, que não gosta dessa gente que mede palavras como quem ajusta vestido Prada. Gostaria de ouvir menos sua voz, mas não falo nada. Gosto da garota. Cabelos louros, bem louros, na nuca. Ontem foi-se um mês desde que mudou para o prédio. 604. Gosto dela o bastante para aturar sua voz, e a da ave odiosa. Não entendo o que poderia querer com um papagaio. Não pergunto. Ela explica mesmo assim. Explica que, no século 16, depois de fumarem muito pau-brasil, uns caras decidiram que o paradeiro do Éden era a América do Sul. Tinham mapa, previsões e uma idéia na cabeça: PAPAGAIOS.


Sento, ela no meu colo. Encaixa. A história é esta,


No início era assim. Era o verbo. Os animais faziam mais que correr livremente pelos prados verdes e frescos do paraíso, a bolinar Eva enquanto Adão se ocupava em desacreditar o Letrismo – escola histórica hoje pouco afamada para a qual a Bíblia nada mais foi do que uma sopa de letrinhas que Deus derramou durante uma briga com Lúcifer, o anjo mais punheteiro da confraria, líder da primeira greve da história ao se recusar a completar tarefas como a paz mundial, o Grand Canyon e a depilação da Cláudia Ohana. Antes de imundo, o mundo falava. Toda a Tropa de Elite do Senhor era dotada de perfeita capacidade vocal para discutir vida, esperança e amor ao próximo, ou ligar para Alá e mandá-Lo despachar o corão via cudex. Até o dia em que o saco divino encheu. Expulsou as crianças de casa. Deliberou o fim do falatório no seu zoológico pessoal. E o resto é história. Má história. A História dos Homens.


Milênios depois da Grande Sacanagem, a humanidade continua condenada. Assim Maria conta. Acrescenta que os papagaios, para os nossos chapados do século 16, representavam redenção. Redenção porque conservaram o dom da fala, e, no reino animal, onde há fala, há paraíso. Assim Maria continua: no Brasil, tinhamos pencas deles. A história parece empolgá-la. Excita-la. Posso sentir e a ajeito em meu colo. Num instante visualizo sua buceta se abrindo para mim, emoldurada por lâmpadas em néon que imitam um papagaio, Vegas style. Nunca acreditei na existência do paraíso, mas, por via da dúvidas, enfiei dois dedinhos para conferir se ele andava mesmo pelo Brasil. 604. Ela gemeu. Lôro ecoou. Tive vontade de mandar os dois calarem a boca, mas não fiz nada.

Friday, August 17, 2007

Thursday, August 02, 2007

Friday, February 23, 2007

Matou a família e foi ao cinerama

Há quem diga que aqueles foram o melhor de todos os tempos, o pior de todos os tempos. Há quem diga que éramos jovens, calouros e, redundantemente, todos estúpidos. Que não pintávamos cabelo. Platinado. Que não fumávamos haxixe. Ainda. Que não discutíamos a filmografia coreana de 1934. Sundance. Que foram vacas profanas, que foram vacas sagradas. Vacas loucas. Nunca gordas. Há quem diga que o tempo, embora seja o melhor professor, acaba matando todos os seus alunos. Talvez mate. Torture e mate. Pode-se morrer de ostracismo ou de indigestão, não importa. Como aquele pastel de carne seca com catupiry que transforma sua aorta na Av. Brasil parando para um desfile da Victoria’s Secret em plena hora do rush. Algumas velas acesas, o corpo estirado na calçada, dois ou três olhares mais curiosos. Morte é morte. Matada ou morrida.

Por um bom tempo, achei que do Cinerama não se podia esperar nem mais, nem menos. Assim em sua dose cowboy, sem gelo, não haveria câmara criogênica que livrasse nosso projeto de cair de cabeça (até o último fio) e sola na verdadeira São Silvestre – lycra rosa, em pas de deux, 100m com barreira – rumo ao Vale da Morte. Primeira parada. Aqui mesmo, motorista, e tenha um bom dia. Afinal de contas, a idéia de cine que se tinha em mente, desde então, já nascera com um pé enfiado numa cavidade muito particular onde o sol não bate.

A cova.

Um cineclube? Não se tratava de tudo isso. Não se tratava apenas disso. Do jeito que voltou (third time around) ao mundo, o Cinerama não chegou a contar com um cenário pra lá de animador. O rendimento das reuniões, regadas a cerva do Seu Manoel, esvaía-se com a mesma rapidez da primeira rodada da mesa. Mini-cartazes em P&B, formato a4 e design tão atraente quanto a gaveta de lingerie de Ruth Cardoso funcionavam com a eficácia de um prólogo shakesperiano confiado ao potencial dramático de Fernanda Lima (“Romeu e Julieta 4ever – Uma História de Amor”, 2007, Brasil”). Os filmes, escolhidos a esmo profissional, ora lotavam a sala com o cacife culturale de François Truffaut (Jules et Jim), ora dividiam espaço com as duas moscas e os três gatos pingados que compareciam para conferir o mondo trasho de Álex de la Iglesia (A Comunidade).

De fato, nem tudo eram flores. Quando o eram, havia os espinhos. Ou o fedor. Ou davam alergia. Ou enfeitavam a lapela do Tony Ramos. Jardineiros da Babilônia ecoína que jamais fomos, hoje creio que conseguimos podar, com o nosso amadorismo, o verdadeiro Crime Ferpeito. Se não se tratava de um legítimo Caso de Amor, o Cinerama era como se fosse aquela amante de toda uma vida. Ao menos uma vez por semana, toda uma noite era dedicado aos seus deleite e capricho – e na semana seguinte, nunca deixávamos de voltar. A cada começo de semestre, a paixão era renovada com uma caixa de bombons que vinha em forma de calouros fresquinhos e achocolatados, todos saídos da Oficina do Cinerama, oferecida na Semana de Calouros desde o último semestre de 2005. De lá, somaram-se à equipe Amanda Meirinho (2005/02), Isabel Stein (2006/01), Caroline Gomes (2006/01) e Rodrigo Vaz (2006/02).

Se por um lado o Cinerama só fez ganhar com a cooptação de novos integrantes, o gradual desfalque na velha guarda não passou despercebido. Reativado em maio de 2005 com A Estrada Perdida de David Lynch, o projeto contou, no início, com a participação de Ricardo Senra, Bruno Boghossian e Ana Carolina Bento Ribeiro, além da módica escritora que vos fala, todos nativos do sítio arqueológico que é hoje a leva de calouros de 2004/01. Havia ainda a presença da veteraníssima Maria Flor Brazil (2003/02), responsável pela segunda geração do Cinerama – a qual já havia levado nós quatro, então calouros, à sala capenga do PACC para O Anjo Exterminador de Buñuel, entre outros.

O que mudou desde então? Ao primeiro fotograma a se desembaraçar na tela, o espectador médio dá um gole em sua coca-cola e, de uma só galfada, empunha pipoca o suficiente para fazer de uma pré-estréia com Hillary Duff a maior empregadora de catadores de milho da costa oeste. Com um cineclube que se propõe como alternativa ao filão pop de grupos como o Cinemark, tudo muda. Pra pior. Mas no melhor dos sentidos (ou seria das intenções?). No caso do Cinerama em particular, o público permanece tão oscilante quanto a certidão de casamento de Elizabeth Taylor. Os cartazes rudimentares, reproduzidos de graça pela xerox de qualidade duvidosa do C.A., acabam passando batido na selva de celulose que se entranha por corredores, cortiças ou qualquer superfície lisa dando sopa na faculdade. As agruras não são poucas. No entanto, tampouco a vontade de deixar coalhar o leite derramado.

É preciso, pois, muito mais que um botão e um dedo para apertá-lo para dar início a uma sessão de cinema. Com a adição do novo bolsista no último processo de seleção, Diogo Cunha (2004/02), o projeto ganhou fôlego olímpico. Em 2007, o Cinerama quer fazer da sua terceira geração também a definitiva. É claro que sessão vazia dá aflição. Imagino que, ao menos uma vez na vida, todos os grandes cineclubes já tenham passado por tamanho suplício. Como barulhinho de lixa. Giz no quadro-negro. Punheta no sofá da Hebe. Uma gracinha. Só que mais para quem faz do que para quem vê.